Revista revela que Moro orientou ilegalmente ações da Lava Jato e impediu delação de Eduardo Cunha
Mensagens inéditas analisadas pela parceria entre VEJA e o site The Intercept Brasil mostram que ele cometeu, sim, irregularidades enquanto atuava como juiz
PARCERIA - Dallagnol e Moro: o ex-juiz pediu inclusão de provas nos processos e fez pressão contrária a certas delações (Aílton de Freitas/Agência O Globo) |
As manifestações do último dia 30 tiveram como principal objetivo a
defesa de Sergio Moro. Em Brasília, um enorme boneco de Super-Homem com o seu
rosto foi inflado na frente do Congresso. Símbolo da Lava-Jato, que representa
um marco na história da luta anticorrupção no país, o ex-juiz vem sofrendo
sérios arranhões na imagem desde que os diálogos entre ele e membros da
força-tarefa vieram a público revelando bastidores da operação. As conversas
ocorridas no ambiente de um sistema de comunicação privada (o Telegram) e
divulgadas pelo site The Intercept Brasil mostraram que, no papel de
magistrado, Moro deixou de lado a imparcialidade e atuou ao lado da acusação.
As revelações enfraqueceram a imagem de correção absoluta do atual ministro de
Jair Bolsonaro e podem até anular sentenças.
Só uma pequena parte do
material havia sido divulgada até agora — e ela foi suficiente para causar uma
enorme polêmica. Em parceria com o site, VEJA realizou o mais completo mergulho
já feito nesse conteúdo. Foram analisadas pela reportagem 649 551 mensagens. Palavra por palavra, as comunicações
examinadas pela equipe são verdadeiras e a apuração mostra que o caso é ainda
mais grave. Moro cometeu, sim, irregularidades. Fora dos autos (e dentro do
Telegram), o atual ministro pediu à acusação que incluísse provas nos processos
que chegariam depois às suas mãos, mandou acelerar ou retardar operações e fez
pressão para que determinadas delações não andassem. Além disso, revelam os
diálogos, comportou-se como chefe do Ministério Público Federal, posição
incompatível com a neutralidade exigida de um magistrado. Na privacidade dos
chats, Moro revisou peças dos procuradores e até dava bronca neles. “O juiz
deve aplicar a lei porque na terra quem manda é a lei. A justiça só existe no
céu”, diz Eros Grau, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, falando em tese
sobre o papel de um magistrado. “Quando o juiz perde a imparcialidade, deixa de
ser juiz.”
Não seria um escândalo se um magistrado atuasse nas sombras alertando um
advogado de que uma prova importante para a defesa de seu cliente havia ficado
de fora dos autos? Pois isso aconteceu na Lava-Jato, só que em favor da
acusação. Uma conversa de 28 de abril de 2016 mostra que Moro orientou os
procuradores a tornar mais robusta uma peça. No diálogo, Deltan Dallagnol,
chefe da força-tarefa em Curitiba, avisa à procuradora Laura Tessler que Moro o
havia alertado sobre a falta de uma informação na denúncia de um réu — Zwi
Skornicki, representante da Keppel Fels, estaleiro que tinha contratos com a Petrobras
para a construção de plataformas de petróleo, e um dos principais operadores de
propina no esquema de corrupção da Petrobras. Skornicki tornou-se delator na
Lava-Jato e confessou que pagou propinas a vários funcionários da estatal,
entre eles Eduardo Musa, mencionado por Dallagnol na conversa. “Laura no caso
do Zwi, Moro disse que tem um depósito em favor do Musa e se for por lapso que
não foi incluído ele disse que vai receber amanhã e da tempo. Só é bom avisar
ele”, diz. (VEJA manteve os diálogos originais com eventuais erros de digitação
e ortografia.) “Ih, vou ver”, responde a procuradora. No dia seguinte, o MPF
incluiu um comprovante de depósito de 80 000 dólares feito por Skornicki a Musa. Moro aceita
a denúncia minutos depois do aditamento e, na sua decisão, menciona o documento
que havia pedido. Ou seja: ele claramente ajudou um dos lados do processo a
fortalecer sua posição.
GALHOFA - Fachin: “conversei 45 m com o Fachin. Aha uhu o Fachin é nosso.” (Antonio Cruz/Agência Brasil) |
Em sua defesa após o estouro do escândalo das mensagens, o ministro vem
repetindo que atendia tanto os encarregados da acusação quanto os da defesa no
dia a dia e tinha conversas com eles, nenhuma delas imprópria, na sua visão. De
fato, está na rotina de um juiz receber as partes envolvidas no processo, mas
de maneira oficial, sempre com registro, e não por meio de um sistema privado
de comunicação. A posição do ex-juiz fica ainda mais difícil de defender diante
dos dados analisados pela parceria VEJA/The Intercept. Não eram conversas
protocolares entre juiz e Ministério Público. Do conjunto, o que se depreende,
além de uma intimidade excessiva entre a magistratura e a acusação, é uma
evidente parceria na defesa de uma causa. Os exemplos mais robustos vêm das
conversas entre Moro e Dallagnol. Em 2 de fevereiro de 2016, por exemplo, o
juiz escreve a ele: “A odebrecht peticionou com aquela questao. Vou abrir
prazo de tres dias para vcs se manifestarem”. Dallagnol agradece o aviso. Moro
se refere ao questionamento da Odebrecht à Justiça da Suíça a respeito do
compartilhamento de dados, incluindo extratos bancários, da empresa naquele
país. Grosso modo, a empreiteira tentou impedir que o Ministério Público suíço
enviasse dados à força-tarefa. Preocupado com a história, Moro pede notícias a
Dallagnol no dia 3. “Quando sera a manifestação do mpf?”, pergunta. “Estou
redigindo, mas quero fazer bem feita, para já subsidiar os HCs que virão.
Imagino que amanhã, no fim da tarde”, responde o procurador. No dia seguinte,
Dallagnol informa a Moro que a peça estava quase pronta, mas dependia ainda da
revisão de colegas. “Protocolamos amanha, salvo se for importante que seja
hoje. Posso mandar, se preferir, versão atual por aqui, para facilitar preparo
de decisão”, escreve. Moro tranquiliza Dallagnol: “Pode ser amanha”. No dia 5,
prazo final, por volta das 15 horas, Dallagnol manda pelo Telegram ao juiz a
peça “quase pronta”. A situação é completamente irregular. Em vez de se
comunicarem de forma transparente pelos autos, juiz e procurador usam o
Telegram. Como se não bastasse, o chefe da força-tarefa ainda envia a Moro uma
versão inacabada do trabalho para que o juiz possa adiantar a sentença.
Dentro da relação estabelecida pela dupla, chama atenção também o
momento em que Dallagnol dá dicas ao “chefe” sobre argumentos para garantir
uma prisão. Isso aconteceu em 17 de dezembro de 2015, quando Moro informa que
precisa de manifestação do MPF no pedido de revogação da prisão preventiva de
José Carlos Bumlai, pecuarista e amigo de Lula. “Ate amanhã meio dia”, escreve.
Dallagnol garante que a ação será feita e acrescenta: “Seguem algumas decisões
boas para mencionar quando precisar prender alguém…”. À luz do direito, é
tão constrangedor quanto se Cristiano Zanin Martins fosse flagrado passando a
Moro argumentos para embasar um habeas-corpus a favor de Lula.
Mesmo entre parceiros
com bastante afinidade há momentos de tensão (e que precisam ser resolvidos com
uma conversa ao vivo). Em um deles, ocorrido em um chat de 17 de novembro de
2015, Moro dá um puxão de orelha em Dallagnol. O juiz reclama de que está
difícil entender os motivos pelos quais o MPF recorreu da sentença aplicada aos
delatores Augusto Ribeiro de Mendonça Neto, Pedro José Barusco Filho, Mário
Frederico Mendonça Góes e Júlio Gerin de Almeida Camargo. Dallagnol tenta se
justificar, sem sucesso. “O mp está recorrendo da fundamentação, sem qualquer
efeeito pratico”, critica o juiz. “Na minha opinião estao provocando confusão.”
Para Moro, o efeito prático do recurso apresentado pelo MPF será “jogar para as
calendas a existência execução das penas dos colaboradores”, ou seja, postergará
o início do cumprimento da pena aplicada aos delatores citados. Mais uma vez,
tudo fora dos autos. Dallagnol, resignado, pede um encontro com Moro para a
manhã do dia seguinte: “25m seriam suficiente (sic)”.
CONTRA - Cunha: Moro não queria a delação do ex-presidente da Câmara (Guilherme Artigas/Fotoarena/Estadão Conteúdo) |
Peças fundamentais na
Lava-Jato, as delações exigem também que o juiz se comporte de forma imparcial
e somente após as negociações, conduzidas pelo MPF, pois ao fim do processo
caberá a ele decidir se aceita ou não a oferta. Nesse capítulo, Moro cruzou
igualmente a linha, a exemplo do caso do ex-deputado Eduardo Cunha. Na noite de
12 de junho de 2017, Ronaldo Queiroz, procurador da força-tarefa da Lava-Jato
na PGR, cria um grupo no Telegram com Dallagnol para avisar que foi procurado
pelo advogado de Cunha para iniciar uma negociação de delação premiada. Queiroz
afirma que as revelações poderiam ser de interesse dos procuradores de
Curitiba, Rio de Janeiro e Natal, onde corriam ações relacionadas ao político.
Após membros do Rio de Janeiro serem incluídos no grupo, Queiroz posta uma
mensagem que dá uma ideia de sua visão de mundo sobre a quantidade de honestos
na Justiça e na política (uma visão de mundo compartilhada por muitos de seus
colegas da Lava-Jato). Queiroz afirma esperar que Cunha entregue no Rio de
Janeiro, pelo menos, um terço do Ministério Público estadual, 95% dos juízes do
Tribunal da Justiça, 99% do Tribunal de Contas e 100% da Assembleia
Legislativa.
No dia 5 de julho, durante o período da tarde, os procuradores concordam
em marcar uma reunião com o advogado Délio Lins e Silva Júnior para a terça-feira
seguinte (11 de julho). Naquele mesmo dia, às 23h11, em uma conversa privada,
Moro questiona Dallagnol sobre rumores de uma delação de Cunha. “Espero que
não procedam”, diz. Dallagnol afirma que tudo não passa de rumores. Ele
confirma ao juiz que está programado apenas um encontro com o advogado para que
os procuradores tomem conhecimento dos anexos. “Acontecerá na próxima terça.
estaremos presentes e acompanharemos tudo. Sempre que quiser, vou te colocando
a par”, afirma. Moro, então, reitera seu posicionamento. “Agradeço se me manter
(sic) informado. Sou contra, como sabe.” Detalhe: isso sem saber o conteúdo.
NÃO VI - Barra, da Andrade: Moro pediu à PF para retardar o envio de planilha (Junior Pinheiro/Photopress/Estadão Conteúdo) |
Como a proposta de
delação atingia políticos com foro privilegiado, a palavra final para assinar
um acordo de delação com Cunha passou para a PGR. A homologação competia
ao ministro Luiz Edson Fachin, relator da Lava-Jato no STF. O ex-deputado
corria na época para fechar um acordo antes de o doleiro Lúcio Bolonha Funaro
assinar os termos de sua delação. Os procuradores envolvidos nas negociações
diziam que a dupla falava sobre os mesmos temas, o que tornaria desnecessária a
aprovação das duas colaborações. No dia 28 de julho, já com os anexos de Cunha
em mãos, Ronaldo Queiroz diz que a ideia é analisá-los em conjunto com os
colegas para tomar uma decisão sobre aceitar ou rejeitar a delação. Em 30 de
julho, Queiroz diz que o material é fraco. No dia seguinte, uma mensagem do
procurador Orlando SP, provavelmente Orlando Martello Júnior, traz o
posicionamento de Curitiba — o mesmo de Moro: “Achamos que o acordo deve ser
negado de imediato”.
O papel de líder da
Lava-Jato em Curitiba é exercido em diversas oportunidades pelo ex-juiz. Em
mais de uma ocasião, Moro aparece nos chats do Telegram interferindo na agenda
dos procuradores da força-tarefa, outra atitude que gera a suspeição de
qualquer magistrado. Em 7 de julho de 2015, por exemplo, um membro da
força-tarefa, que a reportagem de VEJA identificou ser o procurador Carlos
Fernando dos Santos Lima, escreve o seguinte: “Igor. O Russo (Moro) sugeriu a
operação do professor para a semana do dia 20”. Igor (o delegado da Polícia
Federal Igor Romário) responde: “Opa… beleza… Vou começar a me organizar”. De
acordo com a apuração da revista, o “professor” era o almirante Othon Luiz Pinheiro
da Silva, da Eletronuclear. Ele acabou sendo preso no dia 28. Em outro
episódio, Moro não apenas sugere uma data para a operação como também já fala
em receber a denúncia. O caso em questão aparece em um diálogo ocorrido em 13
de outubro de 2015. Nele, o procurador Paulo Galvão, o PG, alerta Roberson
Pozzobon, seu colega da força-tarefa, sobre uma orientação do juiz. “Estava
lembrando aqui que uma operação tem que sair no máximo até por volta de 13/11,
em razão do recesso e do pedido do russo (Moro) para que a denúncia não saia na
última semana”, escreve PG. “Após isso, vai ficar muito apertado para
denunciar.” Pozzobon concorda com PG e acrescenta: “uma grande operação por
volta desta data seria o ideal. Ainda é próximo da proclamação da república.
rsrs”.
A partir de um
levantamento das operações ocorridas em novembro e das denúncias oferecidas em
dezembro de 2015, chega-se à conclusão de que o diálogo trata da Operação Passe
Livre, que prendeu José Carlos Bumlai. Ele atuou como laranja do PT, intermediando
um empréstimo de 12 milhões de reais do Banco Schahin ao partido em 2004. O
pedido de Moro comentado na conversa entre PG e Pozzobon acabou cumprido à
risca. Bumlai foi preso em 24 de novembro e denunciado em 14 de dezembro — na
última semana antes do recesso da Justiça Federal do Paraná. No dia seguinte,
Moro recebeu a denúncia, a tempo de impedir que os crimes prescrevessem no fim
de 2015.
Dentro de uma visão
simplista, a estratégia parece um golpe de mestre do juiz para não deixar um
bandido escapar da Justiça. Mas o argumento de que os fins justificam os meios
não pode prosperar numa sociedade desenvolvida. Tal postura de Moro viola o
devido processo legal, pondo em risco o estado de direito. “Nesse caso, a
sociedade pode aplaudir o juiz, por acreditar que ele está tentando ser justo.
Mas ele está infringindo as leis do processo, que o impedem de imiscuir-se em
uma das partes e colaborar com ela, e é uma das garantias para que todos sejam
julgados da mesma forma”, afirma um juiz, que pediu para não ser identificado.
“Imagine que todos os magistrados atuem da mesma forma, infringindo uma regra
aqui e outra ali para alcançar seus objetivos. Um pode se aliar à defesa para
soltar um criminoso; outro pode se aliar à acusação para perseguir um inimigo e,
aí, o céu é o limite”, conclui.
Uma das obsessões de Moro envolvia manter os casos da Lava-Jato em seu
poder em Curitiba, a exemplo dos processos de Lula do tríplex do Guarujá e do
sítio de Atibaia. Nesse esforço, o magistrado mentiu a um ministro do Supremo
Tribunal Federal (STF) ou, na hipótese mais benigna, ocultou dele uma prova
importante, conforme mostra um dos diálogos. A conversa em questão se refere ao
caso de Flávio David Barra, preso em 28 de julho de 2015, quando presidia a AG
Energia, do grupo Andrade Gutierrez. Sua detenção ocorreu na Operação
Radioatividade, relacionada a pagamentos de propina feitos por empreiteiras,
entre elas a Andrade Gutierrez, a Othon Luiz Pinheiro da Silva, da
Eletronuclear, responsável pela construção da usina nuclear Angra 3. Em 25 de
agosto, a defesa de Barra pede ao ministro do STF Teori Zavascki a suspensão do
processo tocado pela 13ª Vara de Curitiba, alegando que Moro não tinha
competência para julgar o caso por haver indício de envolvimento de
parlamentares, entre eles o então senador Edison Lobão (MDB-MA).
Diante da reclamação,
Zavascki cobra explicações de Moro, que diz não saber nada sobre o envolvimento
de parlamentares. Mesmo assim, com base nas informações da defesa, o ministro
do STF suspende em 2 de outubro as investigações, o que força o então juiz a
remeter o caso de Curitiba para Brasília três dias depois. Seu comportamento
perante Zavascki foi impróprio, como evidencia um diálogo registrado no
Telegram dezoito dias depois entre o procurador Athayde Ribeiro Costa e a
delegada Erika Marena, da Polícia Federal. Costa diz precisar com urgência de
uma “planilha/agenda” apreendida com Barra que descreve pagamentos a diversos
políticos. Marena responde que, por orientação de “russo” (Moro), não tinha
tido pressa em “eprocar” a planilha (tradução: protocolar o documento no
sistema eletrônico da Justiça). “Acabei esquecendo de eprocar”, disse. “Vou
fazer isso logo”, completa.
Na pior das hipóteses,
Moro já sabia da existência da planilha quando foi inquirido por Zavascki e
mentiu ao ministro. Em um segundo possível cenário, igualmente comprometedor,
Moro teria tomado conhecimento da planilha depois da inquirição de Zavascki e
pediu à delegada para “não ter pressa” em protocolar o documento. Tudo indica
que a manobra tinha como objetivo manter o caso em Curitiba. “Um juiz não pode
ocultar provas, e, se o diálogo tiver a autenticidade comprovada, estamos
diante de uma conduta bastante problemática”, afirma o advogado Gustavo Badaró,
professor de processo penal da USP, que analisou a pedido de VEJA o episódio.
Na primeira leva de mensagens divulgadas pelo Intercept no mês passado, Moro já
aparecia reclamando de um delegado da PF que havia incluído rápido demais todos
os elementos da investigação no sistema eletrônico, o que obrigaria o juiz a
enviar parte do processo ao STF.
A relação entre Moro e
Dallagnol era tão próxima que abre espaço para que eles comemorem nas
conversas o sucesso de algumas etapas da Lava-Jato, como se fossem
companheiros de trabalho festejando metas alcançadas. Em 14 de dezembro de
2016, Dallagnol escreve ao parceiro para contar que a denúncia de Lula seria
protocolada em breve, enquanto a de Sérgio Cabral já seria registrada no dia
seguinte (o que de fato ocorreu). Moro responde com um emoticon de felicidade,
ao lado da frase: “ um bom dia afinal”. A proximidade rendeu ainda lances
curiosos. Em 9 de julho de 2015, Dallagnol saúda o colega: “bem vindo ao
telegram!!”. Cinco meses depois, dá dicas ao juiz de como usar o programa no
desktop, enviando no chat um link para o download. “Se puder me mandar no
e-mail, agradeço. O tico e o teco da informática aqui não são muito espertos”,
responde Moro. Em março de 2017, Dallagnol escreve ao juiz para tirar uma
dúvida: ele assina o primeiro nome com ou sem acento? O motivo é que o
procurador estava revisando um livro sobre Moro. “Não uso normalmente o
acento”, responde o juiz. Em julho de 2018, Dallagnol atua como assessor de
imprensa, perguntando a Eduardo El Hage, um colega do Ministério Público Federal
no Rio, detalhes de um pedido de participação de Moro em um programa do canal
fechado HBO: “Eles contataram o Moro aqui e ele queria ter o contexto e
informações que possam ser úteis pra ele decidir se atende”. Em um dos períodos
mais tensos da operação, o que se seguiu à ação do juiz que torna público o
famoso trecho do grampo telefônico em que Dilma Rousseff envia o “Bessias” para
entregar a Lula o termo de posse em seu ministério, Dallagnol combina em um dos
chats com procuradores uma nota de apoio a Moro e repassa ao grupo uma sugestão
do próprio juiz para o texto. Na mesma época, Moro também recebe um afago e
conselho de um interlocutor no Telegram (tudo indica, o procurador Carlos
Fernando dos Santos Lima). “O movimento seria nas sombras, como você mesmo
disse”, escreve, referindo-se ao convite de Dilma para Lula. “O seu capital
junto à população vai proteger durante um tempo. As coisas se transformam muito
rápido.”
As conversas entre membros do Ministério Público
Federal assumem várias vezes o tom de arquibancada, com os membros da
força-tarefa vibrando e torcendo a cada lance da batalha contra os inimigos. Em
13 de julho de 2015, Dallagnol sai exultante de um encontro com o ministro
Edson Fachin e comenta com os colegas de MPF: “Caros, conversei 45 m com o
Fachin. Aha uhu o Fachin é nosso”. A preocupação da força-tarefa com a
comunicação para a opinião pública era constante. Em 7 de maio de 2016, Moro
comenta com Dallagnol que havia sido procurado pelo apresentador Fausto Silva.
Segundo o relato do juiz, o apresentador o cumprimentou pelo trabalho na
Lava-Jato, mas deu um conselho: “Ele disse que vcs nas entrevistas ou nas
coletivas precisam usar uma linguagem mais simples. Para todo mundo entender.
Para o povão. Disse que transmitiria o recado. Conselho de quem está a (sic) 28/anos na TV. Pensem nisso”.
Procurado por VEJA, Fausto Silva confirmou o encontro e o teor da conversa
entre ele e Moro.
Curiosidades dos
bastidores à parte, o que vai definir mesmo o destino de Moro à luz das
revelações dos chats são os trechos nos quais fica evidente seu papel duplo de
juiz e assistente de acusação. A Lava-Jato foi assumidamente inspirada na Mani
Pulite, a Mãos Limpas da Itália, que desbaratou um gigantesco esquema de
corrupção na década de 90, resultando em 2 993 mandados de prisão nos dois primeiros anos de
operação. No caso do sistema de Justiça do país europeu há a figura do
magistrado que trabalha no Ministério Público — mas ele não atua nos
julgamentos. A melhor explicação para o comportamento irregular do atual
ministro é que ele tenha se inspirado nessa figura para pautar suas ações na
Lava-Jato. “O Moro confundiu totalmente os papéis”, afirma o jurista Wálter
Fanganiello Maierovitch. “O magistrado que investiga nunca é o que julga, nem
na Itália nem em nenhuma outra democracia do planeta.”
No Brasil, o papel
duplo do juiz viola o artigo 254 do Código de Processo Penal, que proíbe que o
magistrado aconselhe uma das partes ou tenha interesse em favor da acusação ou
da defesa. Essa atuação pode, de fato, provocar a revisão de atos de Moro. No
caso da condenação de Lula, por exemplo, o STF adiou a discussão para agosto.
Será uma decisão complexa e delicada para a Suprema Corte. Ali, mesmo que
alguns ministros já tenham criticado excessos da Lava-Jato, é difícil qualquer
prognóstico. Um dado, porém, é certo. Fiscalizar o que Moro fez enquanto juiz
não significa pôr em risco os avanços contra a corrupção no Brasil, como
sugerem as manifestações recentes nas ruas das cidades do país. A sociedade
brasileira não vai abrir mão do processo que resultou, pela primeira vez na
história, na prisão de políticos e empresários poderosos.
Embora as conversas
mostrem que Moro cometeu infrações, os crimes punidos ao longo da Lava-Jato
gozam de vasta coleção de provas materiais e orais. A maioria esmagadora das
sentenças, aliás, acabou confirmada em outras instâncias da Justiça. Graças ao
esforço dos procuradores de Curitiba, descobriu-se também o Setor de Operações
Estruturadas da Odebrecht, desenvolvido exclusivamente para administrar o
pagamento de propinas efetuado pela empresa no Brasil e no exterior. O
resultado prático e sua importância são incontestes. Diversos políticos que se
locupletaram nos últimos anos ainda estão presos. Entre eles, Lula, Sérgio
Cabral, Eduardo Cunha… O próprio Lula, mesmo que a suspeição de Moro seja
confirmada, pode permanecer preso. Ele já foi condenado em primeira instância
pelo sítio em Atibaia, sentença proferida pela juíza Gabriela Hardt, e o caso
aguarda apenas a decisão do TRF4 (provavelmente favorável à sua condenação).
Portanto, não se trata aqui de uma defesa do Lula Livre nem de estar contra a
Lava-Jato. Mas, sim, do direito inexorável que todos os cidadãos têm de um
julgamento justo.
Na terça 2, Moro (que,
por sinal, não faz mais parte da Lava-Jato) ficou sete horas no Congresso
respondendo a parlamentares sobre o caso. Repetiu o que tem dito nas últimas
semanas: os diálogos divulgados foram fruto de um roubo, podem ter sido
editados e, mesmo verdadeiros, não apontam nenhum tipo de desvio. A cada nova
revelação, fica mais difícil sustentar esse discurso. Na sentença em que
condenou Lula, o ex-juiz anotou que “não importa quão alto você esteja, a lei
ainda está acima de você”. A frase cabe agora perfeitamente em sua situação
atual. Levado ao Ministério da Justiça para funcionar como uma espécie de
esteio moral da gestão Bolsonaro, ele ainda goza de grande popularidade, mas
hoje depende do apoio do presidente para se manter no cargo. Independentemente
do seu destino, o caso dos diálogos vazados representa uma oportunidade para
que o país discuta os excessos da Justiça e o fortalecimento dos direitos do cidadão.
Um país onde as instituições funcionam não precisa de nenhum Super-Homem.
Procurados , Deltan Dallagnol e
Sergio Moro não quiseram receber a reportagem. Ambos gostariam que os arquivos
fossem enviados a eles de forma virtual, mas, alegando compromissos de agenda,
recusaram-se a recebê-los pessoalmente, uma condição estabelecida por VEJA.
Mesmo sem saber o conteúdo das mensagens, a assessoria do Ministério da Justiça
enviou a seguinte nota: “A revista Veja se recusou a enviar previamente as
informações publicadas na reportagem, não sendo possível manifestação a
respeito do assunto tratado. Mesmo assim, cabe ressaltar que o ministro da
Justiça e Segurança Pública não reconhece a autenticidade de supostas mensagens
obtidas por meios criminosos, que podem ter sido adulteradas total ou
parcialmente e que configuram violação da privacidade de agentes da lei com o
objetivo de anular condenações criminais e impedir novas investigações.
Reitera-se que o ministro sempre pautou sua atuação pela legalidade”.
Nenhum comentário